Entrevista Manuel Tão 2000


Manuel Tão

Naturalidade: Lisboa, S.Jorge de Arroios, 24 de Agosto de 1965. Com a Praça do Chile, ali tão perto, onde se podiam apanhar eléctricos para a ?baixa?, para Campolide e Carmo, Poço do Bispo e Alfândega, Areeiro, Sete Rios, Benfica e Carnide. Num tempo em que, apesar do Metro ser um ?centímetro?, os transportes públicos de superfície ainda primavam pela propriedade e eficiência.

[A minha "carreira" com o caminho de ferro é já longa e vem de tempos quase imemoriais. Sempre vivi voltado para a Linha do Oeste, que quando eu comecei a vibrar com comboios, já era electrificada à frente da minha casa. No ano em que eu nasci (1965), a electrificação não chegava ainda ao Porto, ficando-se por Esmoriz.

As primeiras viagens que eu fiz "à terra" (Vila Real), tiveram honras de tracção a vapor de via larga, logo a partir de Esmoriz, onde a máquina eléctrica que vinha de Santa Apolonia dava lugar a uma outra qualquer a vapor (podia ser uma "compound" "ten-wheeler" do Minho e Douro, uma 070, etc.). Eu não me lembro desses tempos, porque era muito novo e viajava dentro do comboio, para todos os efeitos... já vapor do Porto para Régua e além, isso já foram coisas com as quais eu ainda convivi, até 1978.

E, claro está, no Corgo e no Tua, na via estreita, até um pouco mais tarde. Assim como no Dão e no Vouga, onde tive a honra, em 1972, de visitar o deposito de maquinas de Viseu, a convite do chefe de estação (lembro-me como hoje, havia lá duas E120 da Borsig e uma E100)... agora Viseu nem caminho de ferro tem, depois de ter sido demolida a estação à dinamite.

Uma cidade de 80.000 habitantes sem caminho de ferro, que para os nossos governantes é "normal" (o ministro Jorge Coelho, que é de Mangualde nem quer ouvir falar na construção dum ramal de 20 Km de via larga, para re-ligar Viseu ao mundo... uma pouca vergonha!).

Enfim, voltando às minhas memórias, lembro-me também de ter viajado para a Póvoa em miudo. Nessa altura, a Trindade tinha muito, muito vapor ainda, a par das automotoras Allan, de via estreita, que eram azuis com uma risca vermelha, quando eu as conheci pela primeira vez. Da janela da minha casa em Benfica (frente ao antigo apeadeiro da Cruz da Pedra e da concordância de Sete Rios ) vi muita, muita coisa. Aí ficavam as oficinas dos CTT, onde eram reparadas as ambulâncias-postais, tanto de via larga como de via estreita (estas vinham em "zorras"). E também as chamadas "oficinas dos relógios", que dependiam de Campolide, mas onde se guardou durante muito tempo, o "Combóio Presidencial" (que eu vi sair duas ou três vezes a cargo duma 1400).

Quando eu comecei a ver comboios com mais atenção, aí aos dois anos, havia-os eléctricos (UTE´s de Sintra), as tais Allans azuis-de-risca-vermelha, de via larga, algumas locomotivas a Diesel (azuis e brancas, provavelmente 1200 "Brissoneau" - eu na altura não entendia nada de series, compreensivelmente), e... esporadicamente, comboios de mercadorias com locomotiva a vapor. Houve uma altura, tinha eu 2 anos, que houve uma catraifada de combóios a vapor na zona de Lisboa e que passavam à frente da minha casa, na concordância directa à Linha da Cintura. Foi quando as cheias do Trancão deram cabo da linha Lisboa-Porto em Sacavém e a CP andou pelos depositos (como o Barreiro) a ir buscar máquinas da série 0200, que já estavam "encostadas", para irem fazer comboios de balastro, desde a Pedra Furada (no Oeste) até às obras de reconstrução. Depois, a partir aí de 68-69, vieram as 1400 e as 1800 e acabou-se.

As 1400 espalharam-se rapidamente por Campolide com as Alco Americanas e as "Brissoneau" a migrarem para o Barreiro. Lembro-me perfeitamente de assistir a mercadorias rebocados já por 1800, mas ainda com um furgão de madeira à cauda, verde, com vigia e farol de costado, à antiga. Só desapareceram as 1800, com a vinda das Canadianas, 1550 e mais tarde 1960, seguidas lá para os anos oitenta das Francesas 1900-30. Por ali, passou tudo e mais alguma coisa.

Os FIAT que fizeram o Foguete ainda serviram esporadicamente no Oeste, depois da electrificação chegar a Gaia (em 1966), e eu lembro-me de os ver a trabalhar - sem o elemento central, pintados de azul. (Já na sua forma completa, de três elementos, só no Algarve, quando faziam o Sotavento, em meados dos anos 70, já depois do 25 de Abril).

Todas as séries novas que vinham da Sorefame da Amadora, passavam-me à frente de casa, antes de iniciarem a "carreira" comercial. Até caixas de carruagens ML-7 do Metropolitano de Lisboa me passaram à frente de casa, montadas em vagões plataforma de via larga, a caminho das oficinas deles, de Sete Rios!

Conheci o caminho de ferro lá "de fora", primeiro através dos livros. França, Alemanha, Inglaterra, Itália, Espanha, etc., e já nessa altura me dava conta que éramos um país atrasado, onde se cultivava a falácia de que "os comboios era algo a abater", e as estradas e automóvel "é que eram bons". Isto, claro está, muito antes de aparecerem "ecologistas", ou ser moda a "Greenpeace" e coisas do género... bem me lembro (tinha eu oito anos, quando um (...) qualquer decidiu acabar com os eléctricos na minha zona, correspondendo às antigas linhas 1, 5 e 13, Benfica e Carnide). Dizia-se que "empatavam o trânsito". Isto quando já nas cidades alemãs e holandesas se estavam a equipar e a expandir redes de eléctricos modernos, em pleno choque petrolífero.

E continuamos hoje, neste país, com a mesma mentalidade tacanha, a acabar com eléctricos e troleicarros, em Lisboa e em Coimbra, com o petróleo a U$ 30 por barril... Depois desde que passei a viajar, só me dei conta de como estamos cada vez mais distantes da Europa que dizemos ser "politicamente correcto" seguir o exemplo.

A começar pela Espanha.

Manuel Tão (adapt.) - Agosto de 2000


[Continuação da entrevista]

Tem Alguém Ferroviário na Família?
Que me recorde, não tenho ninguém ferroviário na família. Havia um parente ancestral, lá de Trás-os-Montes, que era fiscal de obras do Ministério. E na sua qualidade podia viajar gratuitamente nas linhas de caminho de ferro do Estado, fossem elas do Minho e Douro ou do Sul e Sueste.

O que representa o Comboio, a máquina e a estrutura?
O comboio é ?apenas? a locomoção eficiente, económica, segura, ecológica e sustentável ao alcance dos indivíduos e dos bens, que através da via férrea (estrutura), torna o mundo mais pequeno, e portanto ao alcance de todos. Desde a primeira locomotiva de Trevithick, aparecida em 1804, o conceito de mobilidade alterou-se por completo, passando a consistir - parafraseando o professor Whitelegg - num ?destruir o tempo para ganhar o espaço?. Foi assim, quando a ?Rocket? de Stephenson bateu as suas competidoras em Rainhill em 1832, à velocidade de 48 Km horários. E foi assim também no 16 de Maio de 1990, quando a unidade TGV-A 325, reduzida a 5 veículos, alcançou no ramo ?Tours? da linha Atlantique, a velocidade de ponta de 515 Km/h. Outras máquinas e outros traçados: sem dúvida! Raios de curvatura que não se faziam há 150 anos. Tracção eléctrica ao invés do vapor. Mas a batalha e o desafio continuam exactamente os mesmos. E com eles, o serviço à Humanidade prestado pelo instrumento que é a simbiose veículo-estrutura, susceptível de moldar espaços e estilos de vida como mais nenhuma outra forma de transporte mecanizado tem sido capaz de fazer até hoje, duma forma tão radical no nosso quotidiano. Quanto à ?máquina? em si mesma, eu seria um pouco mais flexível de molde a incluir também a forma ?automotora? (onde estão particularmente os TGV´s, ICE´s, TALGOS de nova geração, etc.). A ?máquina? mais não é senão uma interface de controlo. Entre o quê? Entre veículo e sistema de instalações fixas, como diria talvez Bernard de Fontgalland (considerado por muitos, o pai do TGV). A importância da máquina decorre directamente da optimização dessa tal simbiose combóio-via. Já André Chapellon, quando planificava as modificações naquelas locomotivas a vapor de fraco rendimento, herdadas das redes do PLM e do Estado (França), transformando-as em verdadeiras ?compound?, dizia habitualmente que uma locomotiva jamais poderia ser eficiente, se não garantisse boas condições de trabalho as seus tripulantes...

Ramal de Braga

Viajar? - o que é? viajar de comboio, o que é?
Viajar é, na sequência do que afirmei no ponto anterior, ganhar o espaço. E ganhar o espaço é enriquecer. É trocar algo do nosso orçamento monetário (dentro das possibilidades) e de tempo, pelo atravessamento de diversas paisagens, as quais mais não são senão dimensões espaciais sucessivas e contactos humanos que moldam o nosso intelecto. Ora bem, é precisamente aqui que se faz uma distinção clara entre ?deslocação? e ?viagem?. Quando apanhamos um avião da Portela para Charles-de-Gaulle-Roissy ou Heathrow, na verdade não viajamos para lugar algum. Limitamo-nos a fazer uma deslocação. Entramos num grande edifício chamado ?aeroporto?. Dirigimo-nos a um balcão. Entramos por uma manga e somos conduzidos para o interior dum ?tubo?. Sentamo-nos e apertamos o cinto. Aquilo levanta vôo, vêem-se as nuvens - todas iguais - depois, passado um tempo, apertamos o cinto outra vez, dando-se inicio a um ciclo inverso. Vem a chegada: outro edifício, outro corredor, outros portões. Passou algum tempo e estamos em outro lugar. Não vimos nada pelo meio. Nem soubemos onde estivemos. Foi como se tivéssemos andado de elevador. Já quando vamos de Santa Apolónia a Hendaye, vemos muita coisa, entre paisagens que se sucedem. A partir da fronteira Francesa o TGV ajudou a reduzir a distância-tempo para 5 horas até Paris, mas a ?viagem? continua a sê-lo, de todas as maneiras. Um dia, talvez já não no nosso tempo, quando houver uma rede transeuropeia de ?alta velocidade? completa, e os 300 ou até mesmo 350 Km/h não passarem mais do que uma recordação de tempos passados, vamos ver muitas ?deslocações? a grande distância intra-continental, a transformar-se em verdadeiras ?viagens?, para benefício directo da nossa mente, mas também - e de igual modo - da Natureza, que se verá mais aliviada na procura de energias fósseis não-renováveis, das quais a maioria das actividades de ?transporte? vêem carecendo, no mundo actual.

Caminha - Mata do Camarido

O comboio à porta molda as pessoas?
Do ponto anterior se deduz, de imediato, que o comboio molda as pessoas, mesmo muitas de aquelas que de tal não se apercebam à partida. Mas o que é importante acrescentar é que o comboio molda o espaço também. O espaço onde o combóio está, desde o TGV a uma linha rural numa ?província remota? é, antes de mais, um espaço acessível que inter-actua de forma dialéctica com os indivíduos. Onde o combóio deixa de existir, o espaço torna-se moribundo, ou desintegra-se, despovoando-se. Isto levar-nos-ia a pensar no espaço, pelo menos à dimensão de como este nos é possível perceber, como uma parte visível do ?cosmos? quotidiano; e nos indivíduos como o ?logos?. O combóio aparece no meio dos dois e permite que ambos interactuem. Quando desaparece, dá-se uma ruptura espacial, e ainda que outras formas de deslocação mecanizadas existam, mais poluidoras e menos eficientes portanto do que o comboio, o ?espaço? ora abandonado, torna-se longínquo e desqualificado. Podemos fazer a transposição disto para a escala urbana. As artérias da cidade que eram servidas por eléctricos e deixaram de o ser, em nome duma pretensa ?fluidez? de tráfego ou ?economia? de exploração supostamente obtida com veículos que dispensam o uso e manutenção de infra-estruturas fixas, foram ruas que perderam (em muitos casos irremediávelmente) um papel-charneira de hierarquização urbana, nos bairros onde se localizavam. E o que foi que aconteceu?


O Comboio influencia o Espaço e o Comércio
Transformação, quase-sempre dos usos de solo num sentido nefasto, perda de atractividade para os residentes e comércio e preenchimento desse vazio com actividades marginais, sub-mundo e ?gethos? de minorias étnicas. O Metro, eficiente mas caro, por se posicionar quase sempre abaixo do subsolo, tem dificuldade de requalificar o espaço urbano numa perspectiva equivalente à dos eléctricos. Porque introduz um conceito de mobilidade e conforto divorciado todavia da superfície, onde prevalece a congestão automóvel. Já o eléctrico, com os seus carris na via pública é, se lhe for facultada uma boa inscrição em traçado, um factor de ?traffic calming? e disciplinização do tráfego urbano, desencorajando, também o estacionamento selvagem, que deixa ante a passividade das câmaras, os indefesos peões sem o seu último direito citadino: o de poderem andar nos passeios.

Couto de Cambeses - ramal de Braga

O comboio e o carro?

O carro faz parte da vida moderna, e nunca estará em causa a sua existência e posse por parte dos indivíduos, pelo menos até os níveis mundiais de crude começarem a escassear, lá para 2030. O que deve ser posto em causa, isso sim é o uso e abuso universal do carro para todos os fins. Usar o carro para passear ao fim de semana, em curtas distâncias, fazer um périplo pela província, combinado com transportes públicos (combóio e camioneta), deslocar-nos a certos locais num determinado espectro horário de rarefação de serviços de transporte público: estas são as maneiras inteligentes, eficientes e saudáveis de se fazer uso do automóvel.

Já levar o carro a todas as horas para todo o lado (quase que até para a retrete!) é a maneira de como os cidadãos deste país fazem uso do automóvel e são encorajados a fazê-lo por parte duma série de governos corruptos que, enquanto afirmam "estar preocupados com o ambiente", fecham linhas de caminho de ferro e suprimem carreiras "porque dão prejuízo", porque na verdade, o que lhes interessa é a obtenção, ao fim do ano, de chorudas receitas fiscais, derivadas da venda de combustíveis e de viaturas automóveis.

Era o Ramal de Monção

Às câmaras municipais, por seu turno, que tanto se queixam dos "malefícios" da congestão automóvel, cabem também responsabilidades na forma caótica que assumiu a questão das "acessibilidades" neste país: quando dizem "ter congestionamento", raramente se lembram de que o mesmo é produto directo do licenciamento estúpido e absurdo dos usos de solo à sua responsabilidade - é o dinheiro, o curto prazo, e o lucro fácil que mandam.

E assim temos aqueles abortos dos "Cacéms", com "mamarrachos" de 20 andares sem garagem a aparecerem ao lado de quelhas e azinhagas do século passado, onde os bocados de asfalto que restam, passado um ano depois da repavimentação a cargo dum empreiteiro qualquer, deixam a nu os paralelos de basalto, sobre os quais andavam os carros de bois. Em cada "mamarracho" há várias famílias por andar, que vomitam não-sei-quantos automóveis por cada membro. E depois? A azinhaga "entope", e a câmara, "coitadinha", vai a chorar para o Ministério do Equipamento, dizendo-lhe que quer o "imprescindível" troço de auto-estrada, ou via-rápida "descongestionante" (de preferência a inaugurar antes das eleições, juntamente com um hiper-mercado), porque até o Fundo de Equilíbrio Financeiro é calculado com base na quilometragem de estradas dentro do concelho, sem relevância nenhuma para a rede de transportes públicos... assim se faz a "prosperidade de todos". "Ambiente"? Não é privado nem tem dono: "pertence a todos".

E por isso tem não valor. A socialização dos custos é (a par da privatização dos benefícios...) fácil e gratuita. E ainda se traduz em votos! É claro que há mecanismos, vigorando já em diversos sítios do mundo, que gradualmente prometem libertar os cidadãos destas sujeições absurdas e dum falso modelo falido de "qualidade-de-vida", que em Portugal "ainda vende". Mas quem se atreve a falar publicamente em internalização de custos? E "portagens de congestão"? Ai, ai! Lá se vão os votos!

Interfaces?
Interfaces. Vão-se fazendo aqui e ali. E são necessárias. O problema, mais do que a inexistência das interfaces em quantidade suficiente e com âmbito espacial adequado é a falta dum Plano de Transportes, tanto à escala Metropolitana, como Regional, com o aparecimento de Executivos operando serviços públicos combinados, ferroviários, rodoviários e outros, com um tarifário, bilhética comum a todos os operadores (públicos e privados) e uma estratégia única de funcionamento e cobertura do território. Ora, no quadro actual, em que há uma proposta de lei, que vem de 1976, prevendo a existência de Executivos de Transporte, mas que à responsabilidade directa dos sucessivos governos, subservientes aos ?lobbys? das ?capelinhas?, das empresas públicas de transportes, da DGTT e outros, nunca foi regulamentada e levada à prática, torna-se evidente que as sinergias que as interfaces poderiam e deveriam facultar entre modos de transporte diferentes, ficam muito aquém do seu verdadeiro potencial. É claro, têm havido aspectos muito positivos: quem sai da estação de Metro de Entrecampos e vai para o novo terminal da REFER com o mesmo nome ?já não se molha? (se estiver a chover). Mas as interfaces são investimentos volumosos que devem servir para muitas mais coisas do que evitar a sujeição às inclemências do tempo. É escandaloso que a FERTAGUS não esteja integrada sequer no sistema de passes sociais da Grande Lisboa (o argumento de que ?é privada?, não ?pega?, porque na ?tal Europa? com a qual os políticos tanto gostam de comparar Portugal, há n exemplos de situações onde operadores públicos e privados, nacionais e regionais co-existem lado-a-lado em Executivos de Transporte comuns, com benefícios óbvios para si próprios e para o público que acorre em maior número as seus serviços). Resultado: quem vem do Metro e entra por aquela ?interface?, que supostamente lhe deveria poupar tempo, vai perdê-lo a ter de tirar um bilhete próprio para ir de combóio para a ?outra banda?. Dentro do capítulo das interfaces, há que dizer também alguma coisa sobre o ?park-and-ride? (ou parques dissuasores de periferia): porque motivo é que eles tardam tanto em aparecer, e as câmaras tão pouco pelos mesmos se interessam? Porque como não há uma estratégia de acessibilidades comum e integrada à escala metropolitana, nem muito menos penalizações e restrições ao uso do carro em migrações pendulares quotidianas, aquilo que interessa às câmaras é explorar tanto quanto possível o status-quo actual: isto é, às câmaras interessam-lhes ?parques que dêem dinheiro?, independentemente de se resolver ou não (e é esta última a coisa que acontece) o caos urbano. É por isso que em Lisboa se escarafuncha tudo quanto é praça, para criar um número de lugares irrisório, mas que rende milhões de contos por ano. Quanto à ?barafunda?, essa continua, expulsa dumas ruas, migrante para outras... depois, cada câmara tem o seu tarifário próprio, para os parques que explora, concessionados ou não. Ainda há pouco tempo, havia (e porventura ainda será assim) uma situação ridícula que era assim: uma localidade da periferia de Lisboa tinha parques a pagamento, perto da estação de caminhos de ferro, bem mais caros dos que os existentes dentro da capital. Estes eram, de facto, parques que desencorajavam as pessoas de utilizar... o transporte público! (Uma vergonha, a tocar as raias do ridículo!!!)


O comboio: que futuro, o futuro de Portugal com o seu caminho de ferro?

O futuro para o combóio, o futuro de Portugal com o seu caminho de ferro? Aí está uma pergunta com duas partes a responder, uma fácil e outra difícil, que por si só daria para escrever páginas e páginas infindáveis. O futuro do combóio é já hoje, no presente. Por essa Europa fora. Nem é preciso ir longe, basta tomar um Inter-City de Madrid-Chamartin a Zaragoza-Portillo, e olhar para a nossa direita, lá por alturas de Arcos de Jalón-Calatayud: e lá está a aparecer impressionante, no horizonte, o traçado do AVE Madrid-Barcelona-França, avistando-se viadutos com quilómetros de extensão.

Vigo, Galiza, Espanha. Por sinal, a província mais pobre.

É aí onde a partir de 2004 vão circular combóios revolucionários, como o TALGO 350, capaz de percorrer os 569 Km da futura linha entre as duas maiores cidades Espanholas em 2h02mn, com paragens em Zaragoza, Lérida e Tarragona... e além disso, passar em minuto-e-meio, num intercambiador de bitola, das linhas ?standard? Europeias, de 1435mm, para as outras Ibéricas, de 1668mm. E em Calatayud, onde vai existir um desses aparelhos de mudança rápida de bitola, vão reabrir ao tráfego as linhas do Santander-Mediterrâneo e do Central Aragón, colocando Soria e Teruel a dois passos de Madrid! E que dizer de Zaragoza-Delicias? A antiga estação do Central Aragón, relegada há muitos anos para o estatuto de terminal de mercadorias, albergando também uma valiosa colecção de material histórico da Associação de entusiastas locais, vai transformar-se, pela mão do arquitecto José Maria Valero, num misto de novo terminal AVE e museu ferroviário: futuro e passado lado-a-lado, para reafirmar o desafio constante do caminho de ferro, independentemente do tempo em que vivemos. Esta é a forma actual que vem tomando um transporte intemporal e jovem como o é, sem dúvida, o caminho de ferro: linhas de ?alta velocidade?, com um número restrito de pontos de contacto com o resto da rede... e linhas ?secundárias? (ou até fechadas), que voltam a ter um papel crucial, para servirem de distribuidoras à ?nova rede? - melhor exemplo não podia ser dado. A uniformização de parâmetros técnicos e esbatimento de fronteiras, deverá também, a par com uma crescente restrição ao tráfego de veículos pesados que danificam os pavimentos, fazer reconciliar o caminho de ferro com as grandes plataformas logísticas e portuárias à escala continental e em mercados cada vez mais amplos, e sem fronteiras. Finalmente, à escala urbana, o futuro passa pela reconquista de passageiros ao automóvel, para que as cidades não sucumbam asfixiadas sob o seu peso, e assim sejam devolvidas à vida, aos peões, à cultura e actividades lúdicas. Pois bem, o mundo já percebeu que o melhor meio para o fazer é o eléctrico, porque obriga a actuar à superfície, com a colocação de entraves à circulação automóvel e ao estacionamento selvagem. Nas cidades Holandesas, Alemãs e na Europa Central, estes são conhecimentos e prácticas há muito consagrados e aplicados, que têm vindo a encontrar grandes adeptos novos em países como a Grã-Bretanha e a França, os quais depois de terem quase extinto as suas imensas redes urbanas de superfície de tracção eléctrica, estão agora a ressuscitá-las uma a uma. No tocante a Portugal, e tendo em consideração várias idéias desenvolvidas anteriormente, as coisas não são assim tão claras. Vivemos, até há pouco tempo (1974), num regime ditatorial de 48 anos, o qual desprezou o caminho de ferro, secando-o de investimentos durante décadas, à excepção da linha Lisboa-Porto. Depois veio a Revolução, a euforia da liberdade, o regresso à rotina do quotidiano e a emergência duma nova classe política dirigente. Ora, é aqui que está o grande entrave ao investimento ferroviário em Portugal: muitos destes indivíduos que se movem na esfera do poder sem serem eleitos, mas que povoam ministérios, secretarias de Estado e direcções-gerais, são uma gente que fez uma formação sob a mentalidade que durante tantos anos nos foi incutida pelo Duarte Pacheco, isto é: a ilusão psicológica de que o caminho de ferro era uma ?coisa velha? e ?algo a abater?. Já a construção de linhas de caminho de ferro em Portugal tinha prácticamente parado nos anos 50 (com o último bocado do Ramal de Portalegre) enquanto que no resto da Europa e do mundo ela continuou sempre. Como dizia o Ortega y Gasset, as elites determinam estilos-de-vida e padrões de consumo, e aquilo que nós temos em Portugal é um modelo falido, produto da tacanhez provinciana duma classe política que não evoluiu, e que vende o ?combóio? aos Portugueses como uma coisa da qual ?eles finalmente se libertaram?: era a caranguejola onde andavam enquanto eram ?pobres? ou estiveram no serviço militar. Os industriais, por seu turno, há muito abandonaram o transporte ferroviário, porque os danos causados às estradas, o policiamento das mesmas e a sinistralidade são alegremente pagos pelos contribuintes - os quais passam a vida a choramingar pelo que o Estado lhes leva, mas simultâneamente não são capazes de perceber o que funciona mal no sistema. Enfim, não sou profeta, tanto mais porque me encontro ?na minha terra?. Mas eu diria que se neste país não se investir a bem no caminho de ferro, então investe-se a mal, isto é, numa situação de congestionamento crónico das estradas, regurgitando de camiões para tudo quanto é sítio.
Fronteira, Ramal de Portalegre. Dezembro de 1997.

Neste momento julgo que é imprescindível a vinda do TGV para Portugal. Por vários motivos. Para evitar um agravamento da nossa posição periférica relativamente à restante União Europeia em geral e Espanha, em particular. Porque só assim poderemos aspirar a que o nosso sistema urbano se possa integrar nos ?clusters? que farão parte da Europa policêntrica do século XXI, onde a competição pela localização de actividades económicas geradoras de emprego a jusante e a montante será um dado incontornável. E também porque sem TGV jamais se criará uma verdadeira dinâmica permitindo uma eficaz mobilização de investimentos nas linhas da rede de via larga, que servirão de distribuidoras. A existência de mais do que um operador ferroviário, fruto do livre-acesso à rede consagrada pela Directiva Comunitária 441/90 pode ser muito positiva, se pensarmos que no decurso de décadas temos tido uma operadora ferroviária única que funciona mal, demonstrando muitas dificuldades para ir de encontro ao público, sem que exista um termo de comparação (consequentemente, e ainda hoje, fugir à CP, significa abandonar o caminho de ferro). É necessário, sobretudo, mesmo com o TGV e os TALGOS de ?alta velocidade? a serem explorados pela tal ?RAVEL? (Rede de Alta VELocidade de que se fala), garantir a existência de Operadores Ferroviários Regionais, integrados numa lógica de Executivos de Transporte e fornecedores de serviços públicos, assim como de transportadores de mercadorias, dos portos Atlânticos para o interior da Península e além. O Terminal XXI de Sines, a construir pelo Porto de Singapura pode, com a nova linha Évora-Elvas, constituir um começo. Mas é necessário ir mais além: numa verdadeira política de interfaces logísticas, absurdos como a Linha do Douro a começar em Leixões e a terminar no Pocinho sem se introduzir em Espanha, não teriam lugar. Acredito que dentro de uns anos, o sistema de transportes que temos em Portugal, o qual é o mais dependente da estrada de toda a União Europeia dê, de facto, um grande ?estoiro?, independentemente do caminho de ferro existir ou não. Agora, o que é preocupante é sabermos se, na altura em que o ?estoiro? tiver lugar, vão ou não existir (ainda) disponibilidades financeiras para se dar finalmente início a um novo ciclo alternativo, de acessibilidades reformuladas, na forma e no conteúdo. O facto de não sermos uma ilha e estarmos colados à Espanha, onde muita coisa da Europa já se revê perfeitamente, talvez possa ajudar - é o que me ocorre.

Linhas: fechadas ou temporaraimente encerradas? Adormecidas? Crime público?

Sobre as linhas ?fechadas? eu diria isto: a pior coisa que pode acontecer a uma democracia é a sua perversão, sobretudo quando da mesma se faz uma chancela legitimadora de interesses por vezes obscuros e pouco claros, mas que nada têm a ver com o dos cidadãos, desde aqueles que vivem nos remotos planaltos Transmontanos, aos outros, que habitam numa cidade de 80.000 habitantes como Viseu, e ficaram privados dum transporte público, e com ele, de perspectivas que lhes permitiriam vislumbrar outro futuro nas suas próprias terras. Eu não hesito nestas mesmas linhas de chamar as coisas pelos nomes, e de considerar criminoso o encerramento de qualquer coisa como 1000 Km (ou um terço da rede existente) à data de 1 de Janeiro de 1990 pelos ?responsáveis? (ou irresponsáveis - como se lhes queira chamar...) políticos que se encontravam à frente da tutela dos transportes, na época. Os objectivos de tão rocambolesca medida...? Eu francamente não os compreendo, senão à luz da mesma lógica que presidiu a que um outro dos nossos ?democráticos? governos tenha decidido extinguir a marinha mercante, mandando barcos para a sucata e fechando estaleiros (é assim que nos apresentamos perante o mundo como ?a terra dos navegantes e das descobertas?...).

O Ramal de Famalicão

Esta ?moda? de fechar linhas de caminho de ferro poder-nos-ia conduzir a uma conversa muito extensa, fazendo-nos revisitar experiências desastrosas que tiveram lugar nos anos 50 em sítios como a Irlanda, com a famigerada gerência Andrews, e no Ulster, como o ?Plano Benson?, depois transpostos para a Grã-Bretanha por Beeching, que em 10 anos desmantelou metade dos 32000 Km da rede da British Rail (o petróleo era barato na altura, e ?era preciso? fazer com que a British Leyland vendesse mais carros e ?desse emprego? a muita gente-êngodo Tory, onde até o Labour Party caíu, durante o consulado do Harold Wilson). Não sei. Talvez ao deixar províncias inteiras como Trás-os-Montes e o Alentejo sem combóios se procurasse dar o monopólio dos transportes públicos a uma ou outra firma de camionagem. E evitar que os adubos, os materiais de construção e o cimento, assim como as produções agrícolas e do mármore não pudessem transportar-se de outra forma senão por estrada. E aí já há chorudos dinheiros do bolso dos cidadão para reparar pavimentos em cacos. Ou subsidiar linhas aéreas que só transportam 3 passageiros por semana, mas que não funcionam quando há neve. Quem se importa? Não vivemos todos sob o social-porreirismo? Acredito que tenhamos que vir a reconstruir linhas desmanteladas (caso de Viseu) e a reabrir outras, se o país se não quiser resumir a uma praia de esgotos a céu aberto de Setúbal a Viana do Castelo, com um anexo no Algarve. Mas isso vai fazer-se a custos bem elevados e tarde e a más horas, à boa e velha maneira Portuguesa.

Votos Ferroviários para 2001? Para a década actual?
que se decida rápidamente o traçado do TGV e comecem as obras do Metro da Margem Sul. Para a década: que o cidadão comum, o transporte público e o caminho de ferro se possam finalmente reencontrar.

Manuel Tão, 2000

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